O HOMEM TRANS E A (RE) CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE
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- Valentina Camarinho Pinho
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1 O HOMEM TRANS E A (RE) CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE Patrícia Michelini de Matos Batista, discente do curso de Licenciatura em Ciências Sociais, bolsista de iniciação científica da Universidade Estadual de Santa Cruz (ESC) PROIC/UESC Resumo: A transexualidade é uma experiência que está localizada nas relações de gênero. A experiência transexual mostra que diferente do que a heteronormatividade prega a verdade dos gêneros não está presa ao binômio sexual (macho/fêmea), mas ele se (re) constrói nas múltiplas possibilidades de gênero. Os homens trans são pessoas que nasceram no sexo biológico feminino, mas se reconhecem socialmente no gênero masculino. Este trabalho discute de maneira exploratória a emersão dessa nova categoria identitária, o homem trans. O estudo apoia-se na teoria Queer, onde a sexualidade humana é entendida como algo fragmentado e em constante mutação, podendo ser construída e reconstruída tanto na prática quanto no nível discursivo e identitário. Parte-se da constatação de que há uma necessidade no âmbito acadêmico de contrapor ao discurso médico, outras perspectivas de reflexão acerca da transexualidade para além da patologização. Analisa-se, nesse texto, a trajetória de visibilidade e afirmação de identidade do homem trans e a relevância dessa emergência no exercício de cidadania desses sujeitos. Palavras-chave: Transmasculinidade; Identidade; Visibilidade. Introdução A motivação para abordar o microcosmo homem trans em meio à diversidade existente sobre a temática sexualidade se dá pela necessidade no âmbito acadêmico de contrapor ao discurso médico outras perspectivas de reflexão da transexualidade para além da patologização. A transexualidade é uma experiência que está localizada nas relações de gênero. O corpo não é uma superfície pronta à espera de significação, mas um conjunto de fronteiras, individuais e sociais, politicamente significadas e mantidas através da reiteração dos códigos sociais revestidos de naturalidade, o que Bourdieu chama de biologização do social. De modo que o termo transexual foi fundado a partir do conceito binário do sexo. Foi o dimorfismo sexual, distinção criada no século XVIII pela biologia, que trouxe a perspectiva de dois corpos (homem/mulher) que são distintos, diametralmente opostos, mas que se complementam estabelecendo como verdade hegemônica a heterossexualidade. Antes a mulher era entendida como o homem invertido e inferior, esta ideia era comumente aceita porque se acreditava que a mulher possuía os mesmos órgãos masculinos só que dentro do corpo e não fora. Agora, parte-se da concepção de que esse dimorfismo, de característica histórica, é natural e universal, nesse contexto que a transexualidade é concebida como patológica. A experiência transexual mostra que diferente do que a heterossexualidade prega a verdade dos gêneros não está presa ao binômio sexual (macho/fêmea), mas ele se (re) constrói nas múltiplas possibilidades sociais dos discursos. Por isso, a/o transexual representa um perigo a essa sociedade heteronormativa onde o discurso que Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História LHAG/UNICENTRO, p.217
2 produz e sustenta as normas de gênero se utiliza da violência, seja ela simbólica ou física, para manter o seu regime de poder. A fim de realizar um estudo exploratório acerca do tema, parto do conceito teórico de transexualidade, definido por Bento (2008), vista não como uma enfermidade psíquica, mas como vivências identitárias de gênero, uma das muitas formas de viver o gênero fora dos binarismos rígidos. Entendendo por transexual quaisquer pessoas que buscam o reconhecimento social e legal para o gênero com o qual se identificam. No site oficial da ABHT os homens trans são assim definidos: Você é homem trans se você nasceu com o sexo biológico feminino (ou foi registrado como sendo do sexo biológico feminino quando nasceu e foi criado assim), mas você não consegue se sentir ou não consegue pensar que você internamente tem tanta feminilidade quanto teria uma mulher, mesmo que masculina. Você se sente um cara, um menino, um rapaz, um homem, um ser masculino, mesmo que não ache que seja exatamente o que você acha que seria um homem (ABHT, 2012). Na tentativa de evitar o uso das múltiplas expressões utilizadas para designar a experiência da transexualidade masculina, elegi o termo homem trans como critério de nomeação ao invés de outros como FTM, transhomem, homem transexual, transexual masculino. Da Teoria ao Corpo ou das Teorias Sobre o Corpo O discurso clínico ajudou a forjar a transexualidade nos moldes patológico. Esse caráter essencial e natural dos papéis sexuais não por acaso são difundidos pelas ciências da psique (psicologia, psiquiatria e psicanálise) que são, conforme Foucault, discursos produzidos pelo dispositivo de sexualidade mecanismo que criou o sexo e a necessidade de conhecê-lo para nos conhecermos que trouxeram à tona as várias sexualidades para classificá-las entre normal e patológico. Do discurso clínico emergiram as sexualidades periféricas, degeneradas ou desequilibradas (homossexualidade, bissexualidade, transexualidade, etc.) em oposição a uma sexualidade normal, natural e sã (heterossexualidade), havendo uma preocupação em exercer sobre as sexualidades um controle direto, provocando a incorporação das perversões e uma nova especificação do indivíduo: Muito mais do que um mecanismo negativo de exclusão ou de rejeição, trata-se da colocação em funcionamento de uma rede sutil de discursos, saberes, prazeres e poderes; não se trata de um movimento obstinado em afastar o sexo selvagem para alguma região obscura e inacessível, mas, pelo contrario, de processos que o disseminam na superfície das coisas e dos corpos, que o excitam, manifestam-no, fazem-no falar, implantam-no no real e lhe ordenam dizer a verdade [...] (FOUCAULT, 1993, p.70/71). Em virtude disso, um dos maiores esforços dos estudos Queer reside na crítica ao que Butler chama de heterossexualidade compulsória, isto é, um padrão normativo Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História LHAG/UNICENTRO, p.218
3 hegemônico fundado nas relações heterossexuais, as quais são vistas como as únicas reconhecíveis e legítimas. Butler, em seu livro Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade (2010) aborda o conceito de gêneros inteligíveis que, segundo ela, são aqueles que instituem e mantém relações e continuidade entre sexo, gênero, prática sexual e desejo. De maneira que, certos tipos de identidade de gênero não se conformam às normas de inteligibilidade cultural a transexualidade, por exemplo o que as faz parecer falhas no desenvolvimento e com impossibilidades lógicas. As identidades de gênero só se tornam inteligíveis por intermédio de uma única matriz cultural, a heterossexualidade compulsória (BUTLER, 2010). Butler, no mesmo livro, ainda afirma que o corpo é uma construção social e que, portanto a possibilidade de mudar, interferir no corpo por meio de cirurgias é a afirmação da necessidade de questionar o próprio corpo, demonstrando assim o caráter mutável, não natural e construído das categorias sexo, gênero e heterossexualidade. A repetição de construtos heterossexuais nas culturas sexuais gay e hetero bem pode representar o lugar inevitável da desnaturalização e mobilização das categorias de gênero. A replicação de construtos heterossexuais em estruturas não heterossexuais salienta o status cabalmente construído do assim chamado heterossexual original [...] (BUTLER, 2010, p.59). De maneira que se o corpo é significado socialmente, tal qual a concepção butleriana, é a sociedade que fixa os limites da aceitabilidade e inteligibilidade, é ela que determina quais os desejos autorizados e quais serão marginalizados e a assim o gênero e as sexualidades podem ser pensadas para além dos binarismos (heterossexual/homossexual, homem/mulher, etc.). E é a teoria queer que, segundo Louro (2008), concebe a sexualidade humana como algo fragmentado e em constante mutação, podendo ser construída e reconstruída, tanto na prática quanto no nível discursivo e identitário. O corpo não é uma superfície neutra onde o gênero traz formas e contornos, mas, ao invés disso, o sexo é uma norma cultural que constrói a materialidade dos corpos: Não se pode, de forma alguma, conceber o gênero como um constructo cultural que é simplesmente imposto sobre a superfície da matéria - quer se entenda essa como o "corpo", quer como um suposto sexo. Ao invés disso, uma vez que o próprio "sexo" seja compreendido em sua normatividade, a materialidade do corpo não pode ser pensada separadamente da materialização daquela norma regulatória. O "sexo" é, pois, não simplesmente aquilo que alguém tem ou uma descrição estática daquilo que alguém é: ele é uma das normas pelas quais o "alguém" simplesmente se torna viável, é aquilo que qualifica um corpo para a vida no interior do domínio da inteligibilidade cultural (BUTLER, 1993, p.2). Pensar o corpo enquanto elemento carregado de significação cultural é enxergá-lo como uma exteriorização das tecnologias de sexualização apreendidas no processo de socialização, isto é, por exemplo, lembrar que o homem, o ser Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História LHAG/UNICENTRO, p.219
4 biologicamente macho, não possui seios, não menstrua, possui mais pêlos e voz mais grave. O segmento T e a luta política Associações, organizações, comissões, fóruns, comitês dentre outros, são alguns dos caminhos utilizados pela militância na articulação e luta política pelos direitos da comunidade LGBT. Sem dúvida há um aumento da quantidade e formatos de grupos por todo o país (FACCHINE, 2005). Fazendo uma análise histórica dos movimentos políticos e grupos LGBT, vimos que estes surgem no Brasil em meio à ditadura militar na década de 1970, na mesma onda dos movimentos feministas e negro. Porém, é na década de 80 que o movimento mostra sua forma de lutar e atuar pela cidadania. Sabemos que foi nessa década que houve a eclosão da epidemia do vírus HIV/AIDS e que este era visto como a peste gay ou câncer gay. O que poderia ter sido a ruína dos movimentos se caracterizou, na verdade como um desafio e oportunidade de unificação da luta por direitos. A militância através de parcerias com o Estado ajudou na criação de políticas públicas, nas esferas federal, estadual e municipal, de prevenção a AIDS. [...] com a criação de estruturas formais de organização interna e preocupações com a elaboração de projetos de trabalho em busca de financiamentos, bem como com a formação de quadros preparados para estabelecer relações com a mídia, parlamentares, técnicos de agências governamentais e associações internacionais. Esse novo formato sedimentou-se, em boa parte, por meio da experiência das ONGs-Aids, nas quais atuaram muitos militantes vindos do período anterior, bem como outros recrutados nesse momento. (SIMÕES e FACCHINI, 2009, p. 61 e 62). A fragmentação dos movimentos sociais, sejam eles quais forem, surge como respostas aos apelos da globalização massificante de perspectivas políticas, econômicas e culturais. Assim, a partir da década de 1980 há uma profusão e multiplicação de espaços que se pretendem democráticos e com o movimento LGBT não aconteceu diferente. O surgimento, porém do debate sobre transexualidade dentro do movimento LGBT ocorreu apenas no final da década de 90. A entrada dos/das transexuais, porém não foi um processo simples, pois de acordo Simões e Facchini (2009) o Movimento Homossexual Brasileiro era caracterizado por uma militância intelectualizada e de elite, tendo como membros jornalistas, professores e estudantes universitários. A partir da década de 90 as travestis e transexuais começam, timidamente, a se organizar, até então elas atuavam dentro movimento gay no qual, não necessariamente, as demandas específicas destas eram pautadas. Constatamos que a percepção de injustiça social, sobretudo no que se refere à violência sofrida cotidianamente pelas travestis e transexuais, o desejo de mudança e também a percepção de particularidades desta condição (trans) frente às homossexualidades, motivaram a organização dos movimentos associativos do segmento T (LINO et al., 2011). Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História LHAG/UNICENTRO, p.220
5 A história do movimento de travestis e transexuais é recente. As primeiras reuniões e articulações do movimento datam de Em 1993, a ASTRAL, primeira associação de travestis do Brasil, fundada na cidade do Rio de Janeiro, realizou o primeiro encontro nacional para fortalecer as discussões e a articulação do movimento das travestis. A ANTRA - Articulação Nacional de Transgêneros atualmente uma das associações mais importante de travestis e transexuais do Brasil, surge em dezembro de 2000, na cidade de Porto Alegre, com aproximadamente vinte e oito instituições de todo o Brasil para a sua fundação. Caracteriza-se por ser uma rede nacional. Atualmente a Associação conta com mais de cinquenta e duas instituições afiliadas em todo o Brasil (ANTRA, 2006). A associação tem como objetivo a promoção de campanhas informativas com diretrizes políticas; denunciar e divulgar em todos os meios de comunicação de casos onde for detectado preconceito e ou discriminação; apoiar ações de prevenção do HIV/AIDS e outras DSTs. No ano de 2012, o movimento LGBT e em especial o segmento Transexual passou por uma transformação. Surgiu a Associação Brasileira de Homens Trans (ABHT), uma ONG que tem como objetivo a luta pelos direitos dos homens trans, promoção da cidadania e reconhecimento de que o movimento LGBT como um todo não seria capaz de dar vez e voz a todos os sujeitos, interesses e demandas específicas dos homens trans, marcando assim um novo momento na trajetória LGBT. (ABHT, 2012) Além disso, o surgimento da ABHT serviu para externalizar discussões a muito frequentes nas pautas das reuniões dos coletivos e grupos: a necessidade de visibilizar a trajetória do movimento dos homens trans. No entanto, a invisibilidade do sujeito homem trans é ainda uma questão marcante, por exemplo, no meio acadêmico: São praticamente inexistentes no Brasil, estudos sobre transmasculinidade e que os transexuais masculinos, parecem ter menos visibilidade que as transexuais femininas, tendo em vista a ampla variedade de estudos sobre travestilidades femininas como os de Marcos Benedetti (2005), Don Kulick (1996, 1997, 1998), Roger Lancaster (1998) e Fernanda de Albuquerque e Maurizio Janelli (1995), e transexualidade feminina, como o estudo de Berenice Bento (2006) em comparação com a quase inexistência de similares sobre transexualidade masculina (ÁVILA e GROSSI, 2010 apud ALMEIDA 2012). Ao fazer um breve levantamento de fontes que trabalham com a temática, há uma demonstração clara da escassez destas. Contudo, há de se observar que, ao menos na mídia e dentro do movimento LGBT, o lançamento do livro autobiográfico de João Nery, o primeiro homem trans do Brasil a realizar modificações corporais (cirurgias e uso de hormônios), trouxe visibilidade e tem ajudado na autoidentificação dos sujeitos. Considerações Finais Traçar um perfil único ou fazer uma tipologia social numa tentativa de apropriação da categoria homem trans enquanto elemento essencializador do indivíduo não é o objetivo dessa comunicação. Em função de marcadores sociais como etnia, cor, classe social, orientação sexual, dentre outros é impossível determinar uma identidade uníssona e universal desse sujeito. Porém, um traço geral identificado através de análises exploratórias do site Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História LHAG/UNICENTRO, p.221
6 oficial do grupo ABHT nos mostra, por exemplo, que estes são unânimes quanto à despatologização da transexualidade: Ser trans não é doença. Infelizmente a medicina atualmente descreve a transexualidade como sendo uma condição de patologia como até a década de 1980 fez com a homossexualidade. [...] Nós, da Associação Brasileira de Homens Trans, somos contra a categorização da transexualidade e das formas de ser trans como patológicas e apoiamos a campanha mundial Stop Trans Pathologization (ABHT, 2012). O processo de autoidentificação dos homens trans, de acordo Almeida (2012), tem sido lento e o contato entre eles acontecido geralmente pela internet (sites, blogs e redes sociais) e por conta do processo transexualizador em ambientes hospitalares. Durante muito tempo o uso da invisibilidade política foi um subterfúgio ao preconceito e violência. Mas é possível verificar a presença cada vez maior de homens trans seja nos serviços de saúde ou nos movimentos. A investigação e publicização da história dos movimentos de travestis e transexuais pela academia constitui-se uma via que difere à conformidade com a marginalização social. Referências ABHT, Associação Brasileira de Homens Trans, Disponível em: Acesso em: 15/04/2013. ANTRA, Articulação Nacional de Transgêneros, Disponível em: Acesso em: 15/04/2013. ALMEIDA, Guilherme. Homens Trans : Novos Matizes na Aquarela das Masculinidades? Revista Estudos Feministas. Florianópolis, 20 (2): 256, maio-agosto, BENTO, B. (2006). A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual. Rio de Janeiro: Garamond. BENTO, B. (2008). O que é transexualidade. São Paulo: Brasiliense. BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do sexo. In: LOURO, Guacira, Lopes. O corpo educado: pedagogias da sexualidade. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, p FACCHINI, R. Sopa de letrinhas? : movimento homossexual e a produção de identidades nos anos Rio de Janeiro: Garamond, FOUCAULT, Michel. História da sexualidade. A vontade de saber. 11 ed. Rio de Janeiro: Graal, vol. 1, LINO, Tayane Rogéria et al. O Movimento de Travestis e Transexuais: Construindo o passado e tecendo presentes. Anais do Seminário Internacional Enlaçando Sexualidades. Salvador, SIMÕES, Júlio A.; FACCHINI, Regina. Na trilha do arco-íris: do movimento homossexual ao LGBT. São Paulo: Ed. Fundação Perseu Abramo, p. (Coleção História do Povo Brasileiro). Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História LHAG/UNICENTRO, p.222
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