MARCAS DA NARRATIVA ORAL EM NARRATIVAS ESCRITAS DE CRIANQAS EM IDADE ESCOLAR MARIA ROSA PETRONI - UFMT/CUR
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- Octavio Osvaldo Guterres Domingos
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1 MARCAS DA NARRATIVA ORAL EM NARRATIVAS ESCRITAS DE CRIANQAS EM IDADE ESCOLAR MARIA ROSA PETRONI - UFMT/CUR o objetivo deste artigo e apontar a influencia e as consequencias do discurso oral no comportamento linguist! co escrito, especificamente na aquisigao de narrativas escri tas de criangas em idade escolar. E fato indiscutivel que a oralidade e a primeira forma de contato do individuo com a 1inguagem, 0 que se da na pratica social constante em que ele e inserido desde seu nascimento. Assim, 0 dialogo caracteriza-se como a atividade constitutiva da linguagem e do conhecimento de mundo dela de corrente. E no processo dialogico, portanto intersubjetivo, que a linguagem oral se constroi e se constitui, conforme ja extensamente apontado em determinadas areas da PsicolingUistica nos ultimos anos. Por outro lado, a evolugao do homem e de suas rela goes sociais impuseram-lhe a necessidade de uma forma mais duradoura de representagao de sua propria historia e de seus conhecimentos: a lingua escri~a. Estes dois sistemas linguisticos nao sao, ao contrario do que se julga, urna representagao do outro, mas si~ temas relativamente distintos. A respeito da distingao entre eles, diz Halliday: "ha urnprincipio muito geral em agao que assegura que a lingua falada e a escrita nunca serao totalmente semelhantes: 0 principio de variagao funcional, ou REGISTRO"(1989:44)*. 0 registro varia de acordo com a situagao de interlocugao/produgao escrita em que falante/esqritor e ouvinte/leitor se encontram. Atualmente ternaumentado significativamente 0 numero de pesquisas, em LingUistica, dedicadas a identifica9ao de semelhangas e diferengas entre estes dois sistemas. Sabe-se que 0 discurso oral tern caracteristicas proprias, que vao desde a prosodia ate a estruturagao sinta-
2 tica. Durante uma conversa9ao informal, varios tra90s fundamentais da Lingua falada, tais como ritmo, intona9ao e pausa organizam a cadencia da sequencia enunciada. Segundo Halliday, tais tra90s sac prosodic os e paralinguisticos, sendo os primeiros "parte do sistema linguistico (que) trazem contra~ tes sistematicos de sentido, exatamente como outros recursos gramaticais", e aqueles ultimos como sendo nao gramaticais, "mas varia90es adicionais pelas quais 0 falante assinala a importancia do que ele esta falando"(1989:30). Enquadram-se entre os paralinguisticos 0 timbre (qualidade de voz), a velocidade da fala, os gestos corporais e faciais. Os tra90s prosodicos nao podem ser representados num sistema de escrita, porque esta e temporal, linear e sea mental, "predominantemente determinada por elementos sintat.!. cos/espaciais/graficos"(abaurre, 1992). Discutindo as rela- 90es entre a fala e a escrita, a mesma autora acrescenta que "uma das caracteristicas fundamentais da lingua falada e seu ritmo" e que "urnaspecto importante do processo geral de aquisi9ao da escrita e a elabora9ao, pela crian9a, das diferen9as entre 0 ritmo natural, prosodicamente determinado da lingua falada.. e 0 elaborado e multiforme ritmo da escrita" (id.). Dessa forma, a percep9ao pela crian9a dos diferentes ritmos da fala e da escrita ternconsequencias no seu comportamento linguistico escrito. Ate muito recentemente tem-se caracterizado 0 registro oral como sendo nao-planejado, fragmentario, incompl~ to, repetitivo e, consequentemente, pouco elaborado do ponto de vista sintatico. Como tal caracteriza9ao apresenta-se sob a forma de aspectos negativos, e interessante considera-los. A constru9ao do discurso oral inscreve-se em uma situa9ao interativa de fato, a qual permite aos interlocutores 0 estabelecimento de estrategias e regras do jogo conve sacional. Assim, 0 discurso oral resulta da contribui9ao de cada interlocutor ao jogo dialogico, fundado numa rela9ao bi
3 lateral de produ9ao do dialogo. Como no dialogo intervem os tra90s paralinguisticos, que afetam diretamente sua produ9ao e interpretagao, e compreenslvel 0 aspecto aparentemente nao -planejado da oralidade, ja que este tipo de discurso e cons truido a cada passe da intera9ao verbal e sua organiza9ao p de requerer corre90es, parafrases e repeti90es. de produ9ao oral decorre do fato de que "no discurso oral, a constru9ao sintactica raramente se produz de uma so vez: ela vai progredindo atraves de realiza90es umas vezes "completas" outras vezes "fragmentadas" dos seus constituintes, segundo uma ordem de ocorrencia que, relativamente as regras da gramatica, e imprevisivel" (Nascimento, 1987). A fragmenta9ao pode ser considerada como uma tenta tiva de sele9ao entre palavras e/ou sintagmas mais adequados ao contexto discursivo, com 0 objetivo de facilitar a compr~ ensao/interpreta9ao do ouvinte, podendo realizar-se por meio de corre90es, repeti90es e parafrases. No jogo dialogico, a atividade "co-participativa" dos interlocutores e responsavel nao so pelos efeitos menci nados acima, m~s tambem por incompletude de enunciados, uma vez que pode ocorrer, e frequentemente ocorre, 0 "assalto ao rompido por seu interlocutor. A repeti9ao, que se constitui como uma das formas de hesita9ao, e uma tendencia bastante acentuada no discurso oral de comunidades agrafas ou daquelas que nao ternacesso a escrita, serve tambem para estabelecer a intera9ao dos inte locutores e a coesao do texto oral. Este recurso pode caracterizar uma estrategia enfatica, alem de uma forma de hesita 9aO no desenvolvimento do discurso, conforme mencionado. No
4 ao interlocutor para captar 0 sentido do discurso, enfim, f~ cilitar a compreensao" (Koch,1992), quando detectados probl~ mas "a posteriori", pelos interlocutores. Ja no segundo caso, a tentativa de soluc;ao de problemas da-se "on line" (Marcu~ chi, citado por Koch), isto e, concomitantemente ao processo de enunciac;ao, por meio de falsos comec;os, alongamento de v gais, repetic;oes de sllabas iniciais ou de palavras inteiras, cortes oracionais. Todos os aspectos ate aqui mencionados intervem di retamente na estruturac;ao sintatica do discurso oral, com consequencias na produc;ao escrita, conforme a analise abaixo, que e uma primeira abordagem de urn corpus de textos narrativos produzidos por alunos de 51 serie, na faixa etaria entre 11 e 13 anos, estudantes"da Escola Estadual de 12 e 22 graus "Daniel Martins de Moura", localizada na cidade de Ro~ donopolis, estado de Mato Grosso. Sao alunos provenientes da classe trabalhadora, de nivel socio-economico-cultural baixo, cujos pais sac funcionarios publicos ou operarios com nivel de escolaridade tambem baixo, nao raro chegando ao analfabetismo. Uma analise pormenorizada deste corpus esta em andamento e deve culminar na redac;ao de dissertac;ao de Mestrado no D.L. da UNICAMP. A analise deste material, do qual alguns textos f ram selecionados,evidenciou a influencia de aspectos da oralidade na produc;ao escrita daquelas narrativas, nas quais ocorrem construc;oes linguisticas tipicamente orais ao lade de estruturas proprias da lingua escrita. No ambiente escolar, a proposta de produc;ao textual requer que 0 aluno manifeste-se por escrito de acordo com a norma padrao estabelecida de llngua"escrita. Nessas cpndic;oes, sua cornpetencia cornunicativa, que e suficiente no registro oral, nao basta para a produc;ao de urn texto escrito do tipo requerido pela escola. A dificuldade reside, entao, no acesso do aluno a urnmodele de texto escrito, aquele esp~
5 rado pela escola, que nao coincide com sua habilidade oral.e da tensao entre estes dois polos que nascem constru90es como as que servirao de exemplos na sequencia deste trabalho. (l)"certa vez estava na floresta com duas princesa. La adiante havia uma casa. As duas princesa falou vamos a quela casa. talves podemos achar aquela velhinha legal'! (P.K.ll;6) Neste trecho da narrativa, em que a aluna e tambem protagonista, podemos observar 0 emprego da forma verbal havia, nao-usual e,de certa forma, mais "erudita", isto e, pr, pria da lingua escrita. E interessante atentar para a constru9ao do sintagma nominal regido pelo verbo ir -"a quela ca sa"- sem duvida uma constru9ao mais sofisticada, caracteristica da escrita, em que aparece a preposi9ao ~ e, consequentemente, mais formal que aquela que a aluna produziria na oralidade - "ir naquela casa". Ao mesmo tempo em que a aluna emprega essas formas tipicas da escrita, no mesmo exemplo,r~ corre ao adjetivo legal, lexema autentico da sua faixa etaria, cujo emprego e bastante co~um, na lingua falada, entre adolescentes e adultos. Nos trechos abaixo, a repeti9ao nos textos escritos dos alunos, ocorre basicamente sob a forma do emprego do mesmo item lexical, seja ele 0 proprio sintagma, seja 0 pronome anaforico. (2) "Urndia a menina Lili teve urn sonho. Ela sonhou urn ~ lindo com a bela adormecida'!(e.a.ll;ll) (2.1) "8erta vez urnmenino assistiu urn filme de terro, quando acabou 0 filme ele foi dormi. mais tarde ele teve urn sonho referente ao filme de terro que ele assistiu".(a.b.12; Novamente, em (2.1), ao lade da repeti9ao do pron, me pessoal ele, em rela9ao anaforica com 0 sintagma urnmenino, e do nucleo sintagmatico filme, encontr.amos a regencia nominal do adjetivo referente de acordo com a gramatica normativa, ja que 0 aluno emprega adequadamente a preposi9ao ~: referente ao filme. Neste mesmo trecho, entre tanto, ele ain-
6 da emprega a regencia do verba assistir de acordo com a lingua falada, isto e, sem preposigao: assistir urn filme. Por sua vez, 0 encadeamento do discurso, ou seja,o estabelecimento de relagoes entre os enunciados, da-se,principalmente, por meio das marc as tipicas da narrativa oral:~, ai, entao, urn dia, ou simplesmente pela justaposigao de oragoes. (3)". quando vie ela ja disse: ISBa pode ser a bruxa o feitigo da maca. E ele disse 0 feitigo acaba dando urnbeijo na bela adormecida. ~ ele beijo ela. E 0 sonho de Lili acabou assim~ (E.A.ll;ll) (3.1)".. eu acordei pensando nela. ai eu pensei que e- la estava bem perto de mim nas so que nao estava ~ era so urn sonho.."(e.m.ll;9) (3.2)"..nao va embora fica morando aqui comigo sou sozinha.. "(P.K.ll;6) Em (3.1), a aluna emprega 0 conectivo ai com valor nitidamente temporal, fazendo avangar a narrativa, para, em seguida, introduzir urn "operador argumentativo de contrajungao" (Koch,1988) - nas (mas) - acrescido de uma forma adversativa tipica da oralidade - so que - para expressar uma ideia contraria aquela da sentenga anterior. Na sequencia, 0 conectivo ~ assume urnvalor explicativo equivalente a pois/ porque, como na oralidade. Ja em (3.2), ocorre 0 encadeamento apenas pela justaposigao das oragoes. Neste mesmo exemplo, e interessante observar 0 emprego adequado do imperativo negativo do verba ir - nao va - pouco corrente na oralidade. Num texto escrito, 0 aluno pode empregar, ao mesmo tempo, uma estrutura da lingua escrita e a estrutura correspondente a falada, como podemos ver em: (4)"Apareceu urnhomem muito bonito chamou a princesa mais velha e falou vamos embora comigo" "Pai urnhomem chegou nela e falou vamos embora ~". (P.K.ll:6)
7 E interessante observar que,quando a aluna narra 0 fato em discurso direto, repetindo a fala da personagem, emprega adequadamente 0 pronome pessoal obliquo comigo. Quando, porem, ela relata 0 fato como narradora e, concomitantemente, personagem, quando deterna palavra, ela emprega a forma oral mais eu, correspondente ao pronome comigo, num registro que a identifica social e culturalmente. E frequente, ainda, 0 emprego de frases feitas e de proverbios, ou construgoes que deles se aproximam. Os exemplos estao no mesmo texto e em sequencia, completando a narrativa da personagem sobre a fuga da princesa mais velha com urnhomem muito bonito que elas encontraram enquanto passeavam juntas. (5)"Tudo bem e assim mesmo. Deus que ajuda que dar tudo certo".(p.k.ll;6) Este exemplo, assim como (3) e (3.1) e outros tantos facilmente encontrados nos textos desses alunos, evidenciam 0 carater fragmentario muito presente em suas redagoes escritas. Muitas vezes, a fragmentagao deve-se as idas e vin das do aluno na produgao do seu texto escrito, exatamente da mesma forma que age quando fala. Desse modo, 0 aluno parece ainda nao ter clara a ideia de que na escrita as repetigoes e/ou reformulagoes, responsaveis pela aparente fragmentagao do discurso oral, devem ser controladas. Muitos outros exemplos podem ser acrescentados: (6)"Era apenas urn sonho que eu sonhei e urn dia eu sonhei com uma menina que se chamava Quele..."(E.A.ll;ll) (6.l)"Ele foi tentar dormir de novoe teve urn born sono mesmo com 0 sono que ele teve".(a.b. 12;6) (6.2)"lsso pode ser a bruxa 0 feitigo da maca. E ele disse 0 feitigo acaba dando urnbeijo na bela adormecida~ (E.A. 11;11) Tais exemplos poderiam nao constituir problema algum se falados, quando a prosodia se encarregaria de organi-
8 Ha, ainda, inumeros exemplos da influencia da oralidade em narrativas escritas de crian9as em idade escolar que poderiam ser explorados, mas a limita9ao de tempo e esp~ 90 impoe que eles se restrinjam aos aqui abordados. Finalmente, mesmo corn uma ilustra9ao limltada de minha h±potese, acredito que a influencia da narrativa oral sobre a escrita da crian9a possa,e deva,ser mais amplamente demonstrada em trabalhos futuros, nos quais mais dados venham a ser explorados. Nota As cita90es de Halliday foram extraldas da mesma obra, indicada abaixo, e traduzidas por mim. palavras-chaves: ORALIDADE - ESCRITA - REGISTRO - NARRATIVA Bibl10grafia ABAURRE, M.B.M.The rhythms of speech and writing.iel/mimeo, 1992 HALLIDAY, M.A.K. Spoken and written language. Oxford University Press, 1989 KOCH, Ingedore. Principais mecanismos de coesao textual. Cadernos de Estudos LingUlsticos n2 15, Campinas/SP,' 1988 & SOUZA E SILVA, M.C.P.Atividades de composi- 9ao do texto falado: a elocu9ao formal.mimeo, 1992 NASCIMENTO,M.F.Bacelar do.contribui9ao para urn dicionariode verbos do Portugues.Novas Perspectivas Metodologicas, Lis boa, 1987 PERRONI, M.C. Desenvolvimento do discurso narrativo. Martins Fontes/SP, 1992
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