Várias vozes em Rubem Alves - Um estudo dialógico do ser
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- Flávio Galvão Gorjão
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1 Várias vozes em Rubem Alves - Um estudo dialógico do ser GRAVA, Mateus dos Santos RESUMO Tendo como base a leitura de duas crônicas Escutatória e Se eu fosse você, e do livro Variações sobre o prazer, o objetivo do presente artigo é analisar, à luz dos conceitos do Dialogismo, da Polifonia e da Intertextualidade segundo Diana Luz Pessoa de Barros, os diálogos com outros autores e temáticas além do campo literário, como a música e a culinária, da composição textual do escritor, teólogo, educador, poeta e psicanalista Rubem Alves. Autor de diversas obras de caráter existencialista, Rubem Alves sempre pregou o culto ao prazer no ato das atividades diárias, desde aquela mais simples e corriqueira até a mais complexa e carregada de responsabilidade. Para isso, faz questão de apoiar-se no diálogo com várias das personalidades que tem como inspiração de vida e arte. Palavras-chave: dialogismo; intertextualidade; polifonia; monofonia; rubem alves; escutatória; se eu fosse você; variações sobre o prazer 1. INTRODUÇÃO Faz-se objeto da presente análise, para discussão e reflexão e possíveis novas discussões e compartilhamento de ideias, o cerne de toda questão que diga respeito à comunicação, com seus mais diversos conceitos sobre algo ou distintas formas de abordagem e campos de atuação: o dialogismo em interação verbal e intertextualidade. Tomando-se como princípio o fato de que tudo o que já foi dito sobre o assunto que estiver em pauta, de modo a colaborar, implícita ou explicitamente com o que dito está sendo no agora é inerente a toda e qualquer busca por caminhos para melhor visualização de matérias vitais e/ou solução de problemas, os textos de Rubem Alves mostram-se um prato cheio para saborearmos à luz dos estudos feitos por Diana Luz Pessoa de Barros. Conversam várias vozes no texto de Alves. Interagem entre si e, consequentemente, com seu leitor, na busca
2 pelas peças que possam suprir os diversos clarões que nos deixam constantemente com a sensação de incompletude. Mesmo que muitas vezes a própria incompletude inevitável de uma obra é que dite as regras e indique os caminhos a se seguir, como é o caso do livro Variações sobre o prazer, ao qual convergirão, através do diálogo que travam entre si, as crônicas Escutatória e Se eu fosse você. 2. DESENVOLVIMENTO O texto de Rubem Alves, para dizer o que pretende, usa e abusa dos recursos monofônicos e polifônicos do dialogismo. Segundo Barros (1994), o dialogismo é a condição do sentido do discurso, princípio constitutivo da linguagem, podendo ser desdobrado em dois aspectos, o da interação verbal entre o enunciador e o enunciatário do texto e o da intertextualidade no interior do discurso. Escutatória e Se eu fosse você estão reunidas em subsequência no livro de crônicas O amor que acende a lua (1999), e são, como podemos notar naturalmente, desde seus títulos, o retrato da existência permanente de um outro sujeito no discurso. São, ao longo de seus textos, também a imagem da imprescindibilidade do saber ouvir para poder falar, quando o autor só fará acender mais e mais o referido propósito. Escutatória será aqui tratada por C1, e se inicia mostrando a visão do autor diante dos valores que o mundo atribui aos elementos do discurso: Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso de escutatória. Todo mundo quer aprender a falar. Ninguém quer aprender a ouvir. Pensei em oferecer um curso de escutatória. Mas acho que ninguém vai se matricular. (ALVES, p. 65, 1999) Se eu fosse você, que aqui será identificada como C2, inicia-se da mesma forma, percepção do mundo: O que as pessoas mais desejam é alguém que as escute de maneira calma e tranquila. Em silêncio, sem dar conselho. (p. 73)
3 Percebemos aqui que, sem qualquer outra voz explicitada que não sua própria voz, o autor complementa, ao começar a transcrever C2, a ideia de escuta do início de C1. Em ambos os casos, ocorre uma introdução feita de forma monofônica. De acordo com Luz de Barros: O diálogo é a condição da linguagem e do discurso, mas há textos polifônicos e monofônicos, segundo as estratégias discursivas acionadas. No primeiro caso, o dos textos polifônicos, as vozes se mostram; no segundo, o dos monofônicos, elas se ocultam sob a aparência de uma única voz. Monofonia e polifonia de um discurso são, dessa forma, efeitos de sentido decorrentes de procedimentos discursivos que se utilizam em textos, por definição, dialógicos (BARROS, p. 6, 1994) C2 responde à necessidade de escuta presente em C1. São dois textos de um mesmo autor se relacionando, algo recorrente na obra de Rubem Alves. Algo que se verá em abundância em Variações sobre o prazer. O livro, que aqui será carinhosamente chamado por Mr. V., também começa com uma linguagem monofônica, falando, assim como já mencionado na introdução deste, sobre a incompletude de si mesmo, a própria obra. Com seu primeiro capítulo intitulado Por que não consegui terminar este livro, inicia-se com uma breve explicação sobre a impossibilidade de se ordenar as ideias de forma a se conceber um padrão único: As ideias não me faltam. Ao contrário, elas brotam a todo momento. Já tenho centenas de páginas cheias de anotações. Mas não consigo colocá-las em ordem. São peças de um quebra-cabeça espalhadas pela mesa. Tento encaixá-las umas nas outras para formar um padrão único. Mas elas se rebelam. (ALVES, p. 15, 2011) A arte do inacabado é mais uma vez deflagrada no último capítulo de Mr. V., mas, dessa vez, intertextualizando outra obra não terminada, fazendo-se, assim, a polifonia: Na última página do manuscrito original da Arte da Fuga, de J.S. Bach, aparece uma observação, na letra de Carl Philip Emmanuel, filho de Bach: No desenrolar dessa fuga, no momento em que o nome B.A.C.H. foi introduzido como contratema, o compositor morreu. A morte interrompeu a obra de Bach. Ficou incompleta. Foi seu filho quem a terminou. (p. 171) Além da polifonia [...] as vozes se mostram. - notamos o recurso da retomada, também muito frequente nas obras do autor mineiro e que, não diferente
4 em Mr. V., ocorrerá durante todo o livro nos dois aspectos textuais do dialogismo. Recurso este que Luz de Barros explica: A análise da conversação examina os mecanismos linguísticos da fala, sobretudo os da reformulação discursiva, como a correção, a paráfrase ou a repetição, e seus efeitos interacionais. Podemos, para sentir um pouco mais a dimensão das retomadas e paráfrases presentes nos escritos sob análise, destacar: Em C1, segundo parágrafo: Diz o Alberto Caeiro que não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. É preciso também não ter filosofia nenhuma. E, no quarto parágrafo: Parafraseio o Alberto Caeiro: não é bastante ter ouvidos para se ouvir o que é dito. É preciso também que haja silêncio dentro da alma. Em C2, primeiro parágrafo: A gente ama não é a pessoa que fala bonito. É a pessoa que escuta bonito. Décimo segundo parágrafo: Vou agora lhe revelar o segredo da escuta [ ] o essencial se encontra fora das palavras. Fernando Pessoa, essa distração dos deuses, sabia disso e escreveu: Cessa o teu canto / Cessa, porque enquanto / O ouvi, ouvia / Uma outra voz / Como que vindo nos interstícios / Do brando encanto / Com que o teu canto / Vinha até nós. Não é por acaso que as duas crônicas estão lado a lado na reunião de textos. Ambas falam da necessidade do ouvir, do aprender a ouvir com o silêncio de dentro de nós. Ambas apresentam linguagem polifônica, aquela com a presença de outras vozes, abertamente, auxiliando no discurso, e também a linguagem monofônica, aquela em que as vozes não se mostram, aquela aparentemente composta por uma única voz, mas que, como toda fala, é constituída por outras. Os textos são todos resultados de uma conversação, e, por sua vez, resultará em outra conversação e outros textos. Todos resultados de um diálogo, todos dialógicos: o dialogismo. Luz de Barros: Os textos são dialógicos porque resultam do embate de muitas vozes sociais; podem, no entanto, produzir efeitos de polifonia, quando essas vozes ou algumas delas deixam-se escutar, ou de monofonia, quando o diálogo é mascarado e uma voz, apenas, faz-se ouvir. (p. 06)
5 Da mesma forma, não por acaso foram, as duas crônicas, selecionadas para compor o todo do conteúdo de estudo, ao lado de Mr. V., do presente artigo. A alternância monofonia/polifonia, presente em todo o corpo de texto do livro, é reverenciada como a temática e substância vital em C1 e C2, servindo estas como uma espécie de tapete vermelho para aquilo que será tratado, em Mr. V., através do embate de vários conceitos socioideológicos e culturais das tantas vozes presentes. Mr. V., após ser apresentado pela explicação de sua incompletude, terá como tema central as possíveis variações nas quais o prazer, como principal objetivo de vida, pode se fazer presente em nossas atividades cotidianas. Essas variações são divididas em capítulos, cada um intitulado a partir de um subtema e nome da personalidade fictícia ou não que irá reger a música para a dança dos pensamentos. Lembrando-se que cada uma dessas personalidades é a regente, mas não única componente da imensa rede de interação de ideias que é cada campo abordado nos capítulos. A seguir, uma pequena passagem de algumas das vozes polifônicas e monofônicas, com suas retomadas e paráfrases, em cada uma das variações sobre o prazer. Para distinção, temos o nome dos autores após as falas. Mas, sempre ressalvando, apenas para a distinção oficial no que tange à autoria, afinal, tudo são vozes. Primeira variação: teologia Santo Agostinho Algumas coisas são para serem fruídas, outras para serem usadas, e outras ainda há que são para serem fruídas e usadas. As coisas que são para serem fruídas nos tornam felizes. As coisas que são objetos de uso nos ajudam em nossos esforços na direção da felicidade, de forma a podermos obter as coisas que nos tornam felizes e, assim, nelas descansar. - Santo Agostinho. (p. 93) A ciência é um ser do tempo. Ciências e saberes nascem, crescem, envelhecem e morrem. As coisas da ciência envelhecem e não há ressurreição que as traga de novo à vida. Mas há textos que moram fora do tempo. Não envelhecem. Por vezes são esquecidos e sepultados. Mas logo ressuscitam com corpo de criança. São os textos da sabedoria. A sabedoria é um ser da eternidade. - Rubem Alves. (p ) Segunda variação: filosofia Nietzsche O meu nome é Zaratustra, e me espanto de que você me tenha pedido para tocar uma variação filosófica na minha flauta. Com certeza você não me conhece. Sou músico. Mas a música que toco não agrada aos filósofos. Basta que eu comece a tocar para que os filósofos comecem a correr. A flauta que tenho na mão é a flauta de Dionísio, o deus grego da alegria. Ela tem poderes mágicos, semelhantes aos da flauta do flautista de Hamelin. Quem ouve a sua música fica alegre e se põe a dançar. - Zaratustra. (p. 113)
6 Por isso os filósofos correm: eles têm medo de que eu, com minha música, os faça dançar. A dança é o que mais os amedronta. Porque dança é coisa que se faz com o corpo inteiro. Mas os filósofos não têm corpo. Eles só têm cabeça e olhos. É dos seus olhos que nascem os seus pensamentos. Não sabendo dançar, nem mesmo pensar eles sabem. Porque pensar é dançar com os pensamentos. Os pensamentos dos filósofos não dançam. Eles marcham, como soldados em ordem unida. - Rubem Alves. (p. 113) Terceira variação: economia Marx Para o capitalismo, o objetivo da viagem é um só: o lucro. E, assim, dentro da lógica do sistema, os restaurantes e as fábricas de armas estão no mesmo nível, são peões do mesmo jogo de xadrez. Ninguém, no pregão da bolsa de valores, se pergunta sobre quais ações estão ligadas às empresas que dão mais prazer. Quem fizer isso logo ficará pobre. - De um personagem economista criado por Rubem Alves para o presente capítulo. (p. 129) Claro que mesmo nos restaurantes capitalistas se serve o prazer dos sentidos. Mas a mola propulsora do negócio não é o prazer da comida; é o prazer da caixa registradora. Ah! Como é maravilhosa aos ouvidos do proprietário a sua música. - Rubem Alves. (p. 129) Quarta variação: culinária Babette A parte mais importante da sabedoria da cozinheira não é a técnica de matar a fome, mas a arte de provocar a fome, de abrir o apetite (appetitus = desejo ardente). Os deuses erraram a conta, fizeram a nossa fome grande demais, a nossa sede grande demais. Para o desejo do meu coração, o mar é uma gota, confessa Adélia. - Rubem Alves. (p. 156) Sou onívoro de sentimentos, de seres, de livros, de acontecimentos e lutas. Comeria toda a terra. Beberia todo o mar. - Pablo Neruda. (p. 156) Feitas as respectivas leituras, fica mais que evidenciado que nas variações levantadas por Rubem Alves nada é completo, único ou definitivo. Nada é uma voz apenas, tudo são vozes. E, mesmo na aparente única voz, a monofônica, ao concluir - fazendo-se aqui a grande necessidade das aspas um pensamento, percebemo-nos totalmente inseridos em um discurso poético, longe do autoritário, da verdade absoluta, justamente por causa da voz anterior, a polifônica, que se fez a fim de alcançarmos a resolução. Pessoa de Barros nos elucida acerca do referido discurso: [ ] Discurso poético, por sua vez, é aquele que instala internamente, graças a uma série de mecanismos, o diálogo intertextual, a complexidade e as contradições dos conflitos sociais. Observa-se que se considera poético qualquer discurso poesia, pintura, dança e outros que apresente as características polifônicas mencionadas (p. 06)
7 Identificando, dessa forma, linguagem monofônica e polifônica no texto de Alves, quando este conclui, ainda que por uma única aparente voz, algo alcançado pelo embate das ideias de várias vozes, consideramos o discurso de Escutatória, Se eu fosse Você e Variações sobre o prazer, como não poderia deixar de ser, altamente dialógico, poético e um grande exemplo de leitura esclarecedora a respeito da intertextualidade tão presente e essencial nos discursos ao longo das épocas. 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS Um acabamento, uma conclusão, um Grand Finale para o presente artigo, estaria em dissonância com a incompletude que diz ser a própria obra analisada. E a incompletude que é todo ser dialógico e intertextual. O que fica aqui é a sugestão da leitura das citadas obras para conclusões individuais a fim de que se torne, cada uma dessas conclusões, uma nova voz presente no dialogismo intrínseco das relações, fazendo surgir, assim, mais motivos para mais diálogos, para mais textos e intertextos. REFERÊNCIAS ALVES, Rubem. O amor que acende a lua. 8ª edição. Ed: Papirus. 214 p., 1999, Variações sobre o prazer. 2ª edição. Ed: Planeta. 188 p., BARROS, Diana Luz Pessoa de; FIORIN; José Luiz. Dialogismo, Polifonia, Intertextualidade. 2ª edição. Ed: Edusp. 81 p., 1994.
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