A luz natural e a percepção do espaço arquitetônico em edifícios de
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- Malu Sacramento Tavares
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1 A luz natural e a percepção do espaço arquitetônico em edifícios de caráter religioso Fabiane Castro Lopes de Paula - fabianecastro@hotmail.com Pós-Graduação em Iluminação e Design de Interiores Instituto de Pós Graduação IPOG Goiânia, GO, 5 de Abril de 2013 Resumo Este artigo tem como tema a luz natural, entendida por alguns estudiosos como uma dimensão da própria arquitetura, e tem por objetivo avaliar como a mesma é utilizada pelo arquiteto e percebida pelo usuário nos edifícios de caráter religioso. Através de revisões bibliográficas, apoiadas em referencial teórico, foram apresentados uma breve reflexão sobre a percepção do espaço através da luz natural e uma retrospectiva da arquitetura religiosa desde a antiguidade até a arquitetura moderna, considerando aspectos através dos quais a luz do dia se apresenta diante dos olhos e transmite ao homem a noção do sagrado, do local de culto, através do espaço edificado. Foram analisados também três exemplos de projetos significativos: a capela de Romchamp, de Le Corbusier, a Catedral de Brasília, de Oscar Niemeyer e a Igreja da Luz, de Tadao Ando, com o objetivo de ilustrar a maneira como o arquiteto influencia a interação entre o homem e o edifício através da utilização da luz natural. Concluiu-se que, mesmo partindo de um mesmo pressuposto, a luminosidade dramática associada ao uso religioso, o arquiteto pode chegar a soluções as mais diversas possíveis, transmitindo de forma peculiar, através da arquitetura, a espiritualidade e o sobrenatural. Palavras-chave: Luz natural. Percepção do espaço. Edifícios religiosos. 1. Introdução Nossas vidas estão intimamente ligadas à luz. Literalmente, não podemos viver sem ela. É uma das forças básicas e imutáveis da natureza. Na visão de Millet (1996), a luz é um elemento primário, que anima a vida na terra. A criação do espaço é feita através da luz e a luz é necessária para a percepção desse mesmo espaço. O espaço só pode ser compreendido através da visão e a visão só existe pela ação da luz, que é o elemento orientador da vivência humana. A luz não pode ser tratada como um elemento a parte do projeto arquitetônico, mas como uma nuance da arquitetura. Tem o poder de realçar volumes, evidenciar texturas, conduzir o olhar, influenciar a percepção do espaço edificado e transmitir uma mensagem. É a luz que produz a sensação de espaço. O espaço é aniquilado pela obscuridade. A luz e o espaço são inseparáveis. Se a luz é suprimida, o conteúdo emocional do espaço desaparece, tornando-se impossível de perceber (GIEDION, 1986:467). Para Millet (1996), a arquitetura depende da luz. Da mesma maneira como a luz revela as formas arquitetônicas e os espaços produzidos por ela, ela simultaneamente revela o significado e as intenções que são liberadas através do processo de concepção, projeto e
2 construção. Segundo o Manual do Curso Iluminação, Conceitos e Projetos, um dos objetivos da iluminação é a utilização da luz como principal instrumento de ambientação do espaço na criação de efeitos especiais com a própria luz ou no destaque de objetos e superfícies ou do próprio espaço. Este objetivo está intimamente associado às atividades não laborativas, não produtivas, de lazer, estar e religiosas residências, restaurantes, museus e galerias, igrejas etc. É a luz da emoção (OSRAM, 2012). É sobre a luz da emoção, que influencia comportamentos, que queremos refletir, buscando entender e exemplificar como, através da sua interação com a arquitetura, se faz a ponte entre o concreto e o abstrato, a conecção entre o material e o espiritual, criando uma atmosfera propícia à introspeccção e o recolhimento inerente ao ato de cultuar. 2. Percepção do espaço: a luz e a arquitetura Segundo Lima (2010), a percepção pode ser definida como a função psíquica que permite ao organismo, através dos sentidos, receber e elaborar a informação proveniente do seu entorno. Entre os fatores que influenciam na percepção de um determinado objeto estão os estímulos sensoriais, a localização do objeto no tempo e no espaço e a influência das experiências prévias dos sujeitos, tais como a cultura e a educação. A percepção da luz ocorre, da mesma forma, a partir das características fisiológicas, dos aspectos históricos e culturais, e da memória pessoal. Um exemplo de como os estímulos sensoriais influenciam no processo perceptivo está na percepção de espaço da pessoa com deficiência visual, que se dá a partir do apoio fundamental das informações táteis e sonoras, em uma visão de mundo muito particular. A mensagem transmitida pela luz natural só pode ser percebida e só pode influenciar a percepção do espaço edificado naquele que vê, pois se revela através da visão e de nenhum outro sentido. A percepção é uma atitude de extremo refinamento que recorre aos depósitos de informação da memória (LIMA, 2010:25). A atividade cerebral se utiliza de sutis classificações e comparações, tomando uma série de decisões até que os dados armazenados através dos sentidos se convertam em uma percepção consciente do espaço edificado. O estado emocional do indivíduo afeta o processo receptivo, assim como seus valores éticos e morais, sua herança cultural, sua personalidade e suas experiências individuais. Hopkinson (1969), afirma que aquilo que vemos depende não somente da qualidade física da luz ou da cor presente, mas também do estado de nossos olhos na hora da visão e da quantidade de experiência visual da qual temos de lançar mão para nos ajudar em nosso julgamento. O processo de ver depende também da mente que interpreta os estímulos luminosos, porque o ser humano olha o tempo todo, mas realmente vê somente aquilo que sua mente está interessada em assimilar. Sua experiência de vida, desejos e aversões influenciam
3 no ato de visualizar o que o rodeia (BARNABÉ, 2007:8). Assim, aquilo que vemos depende não só da imagem que é focada na retina, mas da mente que a interpreta. No caso do edifício, esses fatores fazem com que o arquiteto, a partir da sua própria bagagem cultural e sensorial imprima no ambiente edificado a sua própria forma de ver e sentir o espaço, ao mesmo tempo em que fazem com que cada usuário perceba o espaço de formas diferentes a partir da sua própria história particular. A luz revela a edificação, suas intenções, seus espaços, suas formas e seus significados. A luz revela a arquitetura e, no melhor dos casos, arquitetura revela a luz (MILLET, 1996:3). De acordo com Lima (2010:109), a iluminação tem a faculdade de mudar a percepção que temos de um objeto. A luz é importante enquanto elemento arquitetônico, uma vez que a percepção do espaço edificado é dependente da relação que a mesma estabelece entre a estrutura, o espaço e as suas características físicas e materiais: uma vez que a arquitetura trabalha com formas, a percepção destas formas será revelada pela luz, da mesma maneira que a arquitetura será capaz de nos revelar a luz, esculpindo-a. A relação entre cada parte no todo é importante para informar à nossa percepção a construção visual do lugar, estabelecendo relações entre a luz e os elementos arquitetônicos envolvidos. Planos diferenciados, ondulações, depressões, relevos, texturas e materiais resultam em superfícies que se acentuam e se diferenciam através de gradientes de luminosidade (TRAPANO e BASTOS, 2006:68). A luz pode definir diferentes setores no espaço construído, pois a sua hierarquia acentua a identificação de zonas distintas em um mesmo local, delimitando caminhos e diferenciando as funções do lugar. Segundo Trapano e Bastos (2006:69), fenômenos naturais, como a luz, surgindo dentro de espaços que apresentam simplicidade das formas, estimulam e inspiram nossa consciência e transformam o espaço uniforme em espaço dramático. Tadao Ando em Furuyama (1997:12), afirma que luz e sombra concedem movimento, afrouxam sua tensão e injetam corporalidade no espaço geométrico. Na visão de Millet (1996), a luz revela experiências, na medida em que pode nos conectar com uma época, um local específico ou uma determinada atividade; revela formas, de acordo com a maneira como interage com os materiais e os aspectos estruturais do edifício; revela o espaço, uma vez que define limites entre interior e exterior, afeta a orientação espacial e provê orientação; e revela significados, de acordo com o aspecto conceitual que assume. A luz contemplativa valoriza a escuridão, a penumbra, criando uma atmosfera de recolhimento, de introspecção. A luz teatral dramatiza um cenário, um espaço ou um evento. A luz metafórica sugere a comparação com outro lugar ou conceito. A luz simbólica representa frequentemente algo imaterial e a luz divina, aspecto especial da luz simbólica, representa o Deus.
4 3. Retrospectiva histórica: a luz natural e o espaço religioso Simbolicamente relacionada ao divino desde a Pérsia, o Egito e em todas as mitologias, e ao belo e ao bem em toda a tradição filosófica, a luz tem sido, historicamente, um dos principais elementos constitutivos da arquitetura religiosa. Para Zonno (2012:1), é na relação poética entre espaço e luz que o significado da arquitetura religiosa é construído nas suas mais variadas manifestações em todos os tempos. No antigo Egito (2780 a.c.), o grande templo de Ammon, em Karnak (1530 a.c.) já apresentava recursos engenhosos de captação da luz natural e dos raios solares. O templo Egípcio divide-se em três partes ao longo de um eixo: pátio com colunas, sala epístola e santuário. Orientado a Leste, tem na sua porta de entrada a metáfora da porta para o céu, recebendo a luz nascente. A sala principal, que era utilizada normalmente para conferências, era geralmente iluminada por uma clarabóia central. À medida que se avançava pelo edifício, os espaços iam adquirindo dimensões cada vez mais reduzidas, terminando o percurso na célula fechada do santuário. A luz tinha essencialmente um carácter simbólico. À medida que se avançava, os compartimentos iam escurecendo até chegar ao santuário, em penumbra (MONTEIRO, 2009:19). Figura 1 Templo de Ammon, em Karnak. Esquemas de iluminação Fonte: Laboratório de iluminação da UNICAMP (2012:3) A luz natural na Grécia Antiga (Séc. VI a IV) passa a ser utilizada essencialmente como meio de definição da forma. Segundo Monteiro (2009:19), a sua presença resulta do seu contato com a massa construída. O Parthenon, projetado por Ictino cerca de 450 a.c., tem a intensidade da luz natural no seu interior suavizada pelo ritmo definido pelas suas colunas e sua implantação no sítio permite que o sol da manhã ilumine as estátuas no interior da edificação.
5 Figura 2 Parthenon Grego. Esquemas de orientação solar Fonte: Laboratório de iluminação da UNICAMP(2012:4) Na Roma antiga (I a.c. a II d.c.), os Romanos trataram o espaço como uma substância a modelar e a articular. A luz realça formas e relações espaciais sem, de um modo geral, ser exaltada ou mistificada (MONTEIRO, 2009:17). Grandes especialistas na arte de construir abóbodas, construíram o Panteão, ou templo de todos os deuses, em Roma por volta de 130 d.c.. Para Gombrich (1972:82), seu interior é uma gigantesca rotunda com teto em abóboda e uma abertura circular no topo, através da qual se vê o céu aberto. A iluminação zenital provê luz abundante e uniforme, difusa, vinda do alto e refletida nas paredes do templo. O Panteão Romano não tem janelas, mas todo o recinto recebe luz abundante e uniforme do alto. Conheço poucos edifícios que transmitam semelhante impressão de serena harmonia. Não há qualquer sensação de peso agressivo. O enorme zimbório parece pairar livremente sobre nossas cabeças como uma segunda abóboda celeste (GOMBRICH, 1972:82). Figura 3 Panteão Romano. Vista interna Fonte: Laboratório de iluminação da UNICAMP (2012:5)
6 O primeiro espaço monumental da Cristandade Bizantina (330 a 1453 d.c.) é Hagia Sophia, ou Sagrada Sabedoria, construída em Istambul por volta de 532 d.c., onde um anel de quarenta janelas faz com que a enorme cúpula pareça flutuar. Hagia Sophia reflete o desejo de traduzir a grandiosidade religiosa e política (...) em uma experiência espacial expansiva, dinâmica, inundada de luz espiritual. Do alto da arrojada cúpula, a luz, como mística emanação do divino, em tudo penetra, tudo transforma, até mesmo, e principalmente, a emoção humana (ZONNO 2012:6). Figuras 4 e 5 Hagia Sophia vista interna e esquema de iluminação Fonte: Laboratório de iluminação da UNICAMP (2012:9) A arquitetura Românica (Séc. IX a XIV) exigia paredes maciças com pequenas aberturas para a sustentação da cobertura. Assim, as igrejas Românicas encerram uma escuridão quase absoluta no seu interior. A luz é utilizada pontualmente para realçar determinadas formas. Colunas de luz que rasgam a escuridão com o objetivo de realçar elementos ou superfícies. Estes interiores de fraca luminosidade, que em muitos casos só poderiam receber os fiéis à luz das velas, estavam plenos de um sentimento de fé e piedade. O movimento em direção ao altar, símbolo de Cristo, é fundamental. Este movimento, que empurrava o homem pela nave, desde o pórtico e o nartex, lugar de transição do exterior para o espaço sagrado, até ao altar, determina a concepção do espaço interior na igreja Românica, e a importância da luz neste movimento, transformando o altar num espaço focal, iluminado pontualmente (MONTEIRO, 2009:18).
7 Figura 6 Igreja de São Miguel, Pavia, Italia (1100 a 1160) esquema de iluminação Fonte: Laboratório de iluminação da UNICAMP (2012:10) O período Gótico (Séc. XII a XIV) foi o pioneiro no uso do vidro, conferindo à arquitetura o sentido de transparência. De acordo com Lima (2010), o vão se converte em elemento translúcido e colorido, tornando-se agente transformador da luz. Assim, o espaço por ela penetrado passa a ser o ambiente do sagrado: no período Gótico, a luz transforma-se num elemento cheio de força e potência, elemento arrebatador da arquitectura e do seu espaço. Não era uma luz que penetrava no interior com as suas características físicas originais, mas uma luz modificada pela cor dos vitrais, que era comparada a uma luz sobrenatural. Dada a natureza religiosa dos edifícios, a luz natural transformava o espaço físico num lugar espiritual (MONTEIRO, 2009:19). Na visão de Zonno (2012:7), o efeito dos grandes vitrais somado à verticalidade transmitiria a ideia de que somente através da condução da Igreja o homo fragilis poderia garantir a sua salvação, sendo conduzido do mundo terrestre ao celeste. Figura 7 Vitrais da Catedral de Chartres Figura 8 interiores da Catedral de São Vito (Praga)
8 Fonte: Zonno (2012:7) Fonte: Laboratório de iluminação da UNICAMP (2012:12) A iluminação colorida desaparece na Renascença (Séc. XV a XVI), que valoriza a luz branca indireta. Durante o Renascimento foi valorizada a luz natural sem filtros. O espaço interior é caracterizado pela simplicidade das formas, e por uma luz difusa vinda de cima refletida nas paredes brancas. Conforme descreve Lima (2010), na basílica de São Lourenço, em Florença, a luz estabelece uma hierarquia entre os espaços. A luz natural invade a nave principal a partir de grandes janelas laterais localizadas na parte superior da igreja, enfatizando o espaço e destacando a sua importância. Os corredores laterais recebem uma menor quantidade de luz, proveniente de janelas pequenas e redondas, se apresentando como um caminho secundário. Os nichos reservados às imagens não recebem iluminação natural e são iluminados apenas pelas velas dos fiéis. São áreas destinadas ao recolhimento e à oração. Figura 9 Interiores da Basílica de São Lourenço, Florença Fonte: LIMA (2010:113) A basílica de São Pedro, em Roma, construída entre 1506 e 1626, possui numerosos e intrincados recursos de captação da luz natural vinda do alto, que destacam o altar como ponto central das atenções e enfatizam as obras de arte, ressaltando a magnitude e a grandeza da igreja, em uma atmosfera de enlevo e arrebatamento.
9 Figuras 10 e 11 Catedral de São Pedro esquema de iluminação e vista interna Fonte: Laboratório de iluminação da UNICAMP (2012:14) No Barroco (Séc. XVII), a luminosidade se torna o ponto central do projeto e tudo passa a ser idealizado através da luz. Na Arquitetura Barroca, o controle da luz torna-se um dos temas presentes e principais. A calibração dos seus efeitos começou a ser o produto de uma extrema técnica, fundindo luz incidente e luz refletida num mesmo cenário espacial. A luz natural é frequentemente horizontal e captada a grande altitude, ou muitas vezes dissimulada por mecanismos engenhosos que refletindo a luz horizontal a transformavam em luz vertical. Luz difusa e luz incidente são minuciosamente trabalhadas e usadas em conjunto (MONTEIRO, 2009:21). Figura 12 Igreja Nossa Senhora do Carmo, Ouro Preto ( ) Fonte: Laboratório de iluminação da UNICAMP (2012:16) Na Arquitetura Moderna (Séc. XX), o advento das novas tecnologias trouxe uma grande mudança na forma da utilização da luz. O uso do aço e vidro nos sistemas construtivos revolucionou a indústria da construção e as atitudes diante da iluminação natural, trazendo consigo a possibilidade de transparência e de abundância de luz.
10 Frank Lloyd Wright elegeu também a transparência e a leveza do vidro para caracterizar o espaço de uma sinagoga nomeada Sinai Transparente (Beth Shalon Sinagogue, Pennsylvania, 1954). O edifício, que parece uma montanha de luz, reúne a expressividade das linhas em concreto à leveza do vidro. A arquitetura de Wright é um ícone de grandeza e monumentalidade que traduz de maneira forte e impactante a imagem do templo divino como casa da luz. É como fenômeno de claridade que o potencial significado de vida, salvação e de presença do próprio Deus que é luz se realiza. Tal é a abundância luminosa que, sensivelmente, o homem se percebe por ela incluído (ZONNO, 2012:9). Figuras 13 e 14 Frank Lloyd Wright. Sinai Transparente, 1954, Pennsylvania Fonte: ZONNO (2012:9) 4. A capela de Ronchamp A capela de Notre-Dame-du-Haut (Nossa Senhora das Alturas), ou mais comumente Ronchamp, foi projetada pelo arquiteto Le Corbusier e construída de 1950 a 1955 em Ronchamp, a sudeste de Paris, no local onde existia uma capela neogótica em ruínas. Segundo Fracalosi (2012), o sítio de Ronchamp era há muito tempo um lugar de peregrinação que estava profundamente enraizado na tradição católica, porém, após a guerra, ele foi destituído de seu principal símbolo de comunhão, sua igreja, atingida por um bombardeamento alemão, no outono de Para Baker (1998), a arquitetura adquire expressão através da forma, e Le Corbusier, magistralmente, manipula as formas para relacioná-las com as condições do lugar. Ao analisar o sítio, o arquiteto situou a capela em um local de fácil visualização - uma área plana, no topo de uma colina - de forma que o movimento da peregrinação foi todo direcionado pela topografia. Com programa simples, com nave principal, três pequenas capelas e um altar externo para as cerimônias campais, o edifício é configurado por quatro muros, bem definidos em planta, que conformam suas quatro fachadas e representam os quatro pontos cardiais. A grande, pesada e
11 sinuosa coberta de concreto armado aparente é o que dá unidade ao conjunto e é o que evidencia os dois escorços -mais que quatro fachadas- sob os quais o edifício foi concebido: o escorço sudeste, formado por dois muros côncavos, com amplos beirais, convidando o acesso à capela e criando os espaços de congregação; e o escorço noroeste, formado por dois muros convexos, sem beirais, e demarcados pelas três torres das capelas discretamente separadas dos muros adjacentes (FRACALOSSI, 2012). Figura 15 Capela de Romchamp vista externa Fonte: Fracalossi (2012) A capela de Ronchamp é um magnífico exemplo para compreender a interação entre o observador, o espaço e a luz. Segundo Fracalossi (2012), uma faixa de luz entra no interior por frestas horizontais no alto, fazendo flutuar a cobertura cujo peso, no espaço externo, é reforçado pelo tom escuro e aparência tosca do concreto armado em contraste com os muros brancos e espessos que a sustentam. Le Corbusier, cujos projetos geralmente apresentam ambientes inundados pela luz diurna, em Ronchamp apresenta uma ambientação baseada na penumbra e na iluminação indireta: ao entrarmos na igreja, o que primeiro impressiona é o ambiente estar muito escuro. Gradualmente, apercebemo-nos das paredes e começamos a notar que superfícies planas e regularidades não serão mais encontradas no interior do que no exterior do edifício. O próprio piso é como uma paisagem ondulada de lajes de pedra, num padrão irregular. Um pequeno grupo de bancos sólidos para os fiéis forma um palalelogramo a um lado do recinto, defronte do altar-mor e da imagem da Virgem colocada bem acima dele. (...) No ângulo formado pela parede do lado sul e a parede do fundo, que contém a Virgem, existe uma fissura estreita do piso ao teto com um arranjo gigantesco de concreto, semelhante a uma tela ou cortina, que tem o objetivo evidente de impedir a entrada de luz direta. Mas a luz que penetra é tanta que chega a atrapalhar os fiéis que tentam concentrar-se em suas devoções. A penumbra da igreja é fendida para raios de luz radiantes que jorram da fissura estreita. Com essa única exceção, é muito pouca a luz que penetra no recinto. (...) O que do lado de fora parecem torres duas voltadas para leste e uma para oeste são vistas do interior como absides, ampliações recuadas do recinto. E o que parecem aberturas do campanário são, na verdade, janelas que não podem ser vistas do interior, mas que, acima do telhado, espalham uma luz mágica sobre as paredes curvas da ábside, atraindo a atenção dos fiéis para o altar e mais para o alto, onde a luz é mais brilhante (RASMUSSEN, 1959:202).
12 Figura 16 Capela de Romchamp vista interna Fonte: Fracalossi (2012) A parede sul, com espessura superdimensionada, recebeu nichos piramidais com janelas de diferentes formatos e tamanhos, com vitrais coloridos pelos quais penetra a luz do sol, propiciando diferentes jogos de luz que se alternam ao longo do dia. Ao sentar no interior da capela, sente-se um fluxo de luz cuidadosamente direcionado através dos vãos e dos planos inclinados, que são a principal chave de iluminação da capela, compreendendo todo o espaço interno. A luz em constante mudança não só enaltece a arquitetura, como estimula emoções e sensações ao usuário (TEORIA DA ARQUITETURA, 2010). Segundo Baker (1998), considerando a obra sem os seus elementos sacros, como o altar, o púlpito e a Madonna emoldurada na parede leste, o significado não é específico, e a existência é definida por meio da forma e da luz. É a luz que confere à capela a dimensão espiritual, criando uma aura de mistério, com sua variedade de cores e seus contrastes modulando o espaço: A meticulosa exploração da luz transmite uma forte monumentalidade espacial. As composições lineares que as sombras e os raios solares projetam no interior da capela vivificam a atmosfera do espaço, formando jogos de luz e sombra diferenciados, intensificando a aura do lugar, tornando assim a percepção do ambiente única. Desta forma, o interior da capela transforma-se num espaço de projeção, onde a parede já não é um limite, mas sim uma fonte de luz que oferece, através das mutações lumínicas, novos momentos dentro do mesmo espaço (TEORIA DA ARQUITETURA, 2010). Quando se fala em arquitetura e iluminação, é quase um consenso que seja citada a capela de Ronchamp. Esse projeto de Le Corbusier diverge dos seus antecessores, onde a luz do sol é abundante, estabelecendo uma nova tipologia, baseada na luz e sombra, no contraste. Conforme o pensamento de Rasmussen (1986), Le Corbusier, através desse templo notável, deu uma nova contribuição para a arquitetura e mostrou de maneira impressionante como a luz do dia e sua distribuição constituem um maravilhoso meio de expressão para o artista. 5. A Catedral de Brasília Parte do conjunto inicial de edifícios que compõem o Eixo Monumental da capital brasileira, a Catedral de Brasília, ou Catedral Metropolitana de Nossa Senhora Aparecida, foi projetada por Oscar Niemeyer e construída entre 1959 e O edifício possui planta circular de setenta metros de diâmetro, com dezesseis pilares de concreto que se inclinam até tocar uns aos outros. O acesso é demarcado por quatro
13 esculturas, representando os evangelistas, que remetem à obra de Aleijadinho na igreja de Congonhas do Campo, em Minas Gerais, e, como a nave está um nível abaixo do plano de acesso, se dá através de uma rampa descendente, estreita e escura, em uma galeria subterrânea. Figuras 17 e 18 Catedral de Brasília nave e túnel de acesso Fonte: Zonno (2012:10) Sobre essa solução singular, comenta Niemeyer (1992:36): evitei as soluções usuais, as velhas catedrais escuras, lembrando o pecado. E, ao contrário, fiz escura a galeria de acesso à nave, e esta toda iluminada, colorida, voltada com seus belos vitrais transparentes para os espaços infinitos. E ainda: A Catedral de Brasília é um dos prédios que mais me agradam na arquitetura da Nova Capital. É diferente de todas as Catedrais construídas. Com a galeria de acesso em sombra e a nave colorida ela estabelece um jogo, um contraste de luz que a todos surpreendem: cria com a nave transparente uma ligação visual inovadora entre ela e os espaços infinitos (NIEMEYER, 1992:65). Figura 19 Catedral de Brasília croquis de Niemeyer enfatizando o contraste entre a nave e o túnel de acesso Fonte: Muller (2003:19) Para Barnabé (2002:3), Niemeyer utiliza a luz natural como instrumento de qualificação de espaços e formas, e como quesito de forte expressão e significado. Sobre a Catedral, ele
14 afirma: Niemeyer utiliza declaradamente a luz e a sombra como tema materializado em arquitetura, através de um contraste absoluto entre o túnel de acesso descendente escuro valorizando a nave com uma luz manipulada brilhante se ascendendo aos céus (BARNABÉ, 2002:13). Também sobre o acesso à nave da Catedral, escreveu Fabio Muller: A solução dada ao acesso é recurso original que proporciona um dos mais poderosos efeitos plásticos e psicológicos proporcionados pela arquitetura para a experimentação do sagrado em todos os tempos. Para adentrar em tão belo templo, Niemeyer não poderia lançar soluções que declinassem a já comentada unidade interna e externa. Dessa maneira, descartou, deliberadamente, recursos tradicionais como nártex, átrio e a própria porta maciça e visível dos templos de antanho, para construir túnel subterrâneo que faz gradual e surpreendente aproximação desde fora ao interior do templo. Seguindo o caminho ladeado pelas estátuas dos evangelistas, feitas por Ceschiatti, postas em eixo perpendicular com a Esplanada, o fiel toma contato com o túnel estreito e escuro, onde uma rampa, com piso de granito preto, leva-o abaixo para, depois de alguns metros de caminhada, atingir o recinto esplendorosamente transbordante de luz e cor (MULLER, 2003:18). A sombra representa o terreno e leva ao recolhimento, ao silêncio, prepara para a experiência da luz que inunda a nave uma ligação com o céu, com as coisas espirituais. Nas palavras de Niemeyer: Não desejava repetir o contraste habitual, o exterior luminoso e o interior em penumbra ( ) que infundem um senso de penitência e de castigo. Preferi fazer o contrário, para que os fiéis, tendo percorrido a galeria obscura, experimentassem, ao entrar na nave, no contraste de luz e de cores, uma sensação de paz e de esperança (NIEMEYER, 1998:106). No comentário de Barnabé (2002), as trevas são deixadas no corredor de acesso, ficando a nave plena de luz, alegria e transparência, conectada com os céus, a matéria arquitetônica transformando-se em elemento imaterial pelo banho de luz celestial. Nesse espaço de luz cristalina entremeada por cores, a atração pela altura é tão irresistível como em uma ossatura de catedral gótica, mesmo o espaço sendo configurado de forma diferente (BARNABÉ, 2007:18). De forma semelhante, Zonno (20012:9), expressa seu pensamento: produz-se, por contraste, um efeito sensível e dramático como se pode interpretar a partir do croqui do arquiteto. A sensação no interior do espaço sagrado é de expansão e direcionamento ao alto, criando uma atmosfera completamente diversa: leve e de enlevo. Pode-se concluir que, na Catedral de Brasília, a luz e a sombra são utilizadas declaradamente, assim como o concreto e o vidro, como matéria prima da arquitetura:
15 disso tudo decorre que uma visita à catedral faz permanecer, na memória das pessoas, a forma expressiva e as experiências proporcionadas pela manipulação da luz como diretriz de projeto, tanto em relação à luminosidade quanto aos ambientes mais escuros. A simplicidade na proposta simbólica conduz o usuário a refletir sobre o sagrado, curvar-se ao descer por uma rampa em penumbra, visualizar uma possibilidade de redenção no final do túnel e entrar em um espaço de luz mágica. Enfim, uma boa iluminação molda e modifica a realidade, condicionando o estado de ânimo das pessoas e sua percepção geral dos ambientes que vivenciam (BARNABÉ, 2007:18). 6. A Igreja da Luz A Igreja da Luz, projetada por Tadao Ando, pertence à Igreja Unida de Cristo no Japão e está situada num subúrbio residencial a 40 quilômetros de Osaka. A igreja, construída quase em sua totalidade em concreto armado com detalhes em vidro, foi executada entre 1988 e 1989, com orçamento bastante restrito. Na descrição do projeto pelo arquiteto: Preparei uma caixa com grossas paredes de concreto uma construção da escuridão. Então produzi uma fenda na parede permitindo a penetração da luz sob condições de severa constrição. Naquele momento, um facho de luz fratura incisivamente a escuridão. Parede, chão e teto cada qual intercepta a luz e sua existência é revelada, enquanto simultaneamente a luz refletida vai e vem entre eles, iniciando complexas inter-relações. O espaço nasce. Contudo, com cada incremento ou mudança de ângulo na penetração da luz, o ser das coisas e suas relações são recriadas. O espaço, em outras palavras, nunca está amadurecido, mas se torna continuamente novo. Neste espaço de continuo renascimento, as pessoas estarão aptas a evocar as implicações da vida ressonantes (ANDO Apud. DAL CO, 1997:471).
16 Figuras 20 e 21 Igreja da Luz vista interna e modelo Fonte: Zonno (2012:14) Para Monteiro (2009), Tadao Ando usa frequentemente a luz da emoção, a luz que evidencia os objetos ou espaço em que incide. É o tipo de luz frequente na arquitetura até ao final do Românico, no século XIII, mas que tem sido usada ao longo dos tempos por estar associada a um forte efeito plástico. Para Monteiro (2009:82), A Capela da Luz é o exemplo de como Tadao Ando usa a luz natural com uma intenção plástica e simbólica muito forte, através da redução da quantidade de luz no interior do edifício, diminuindo as aberturas ao mínimo. Já na visão de Zonno (2012:13), para Ando, o potencial evocativo do espaço está na visibilidade ou no sentido de presença da luz justamente porque ela irrompe em meio à escuridão. Isto através de um singular recorte em uma das superfícies criando o signo simbólico da cruz entre a luz e a sombra. Segundo Paiva (2010), a propósito da luz utilizada, o arquiteto esclareceu que esta só se converte num elemento maravilhoso a partir do momento em que o fundo é totalmente sombrio. O espaço se altera a partir das relações fenomênicas da luz. A transformação da aparência da luz nos planos geométricos parece afirmar que a instabilidade é parte da natureza, ela mesma um campo de incertezas, do qual também o homem faz parte (Zonno, 2012:14). Na visão de Paiva (2010:72), as alterações que a luz sofre ao longo do dia refletem, uma vez mais, a relação do homem com a natureza, e desta com a arquitetura (que é de carácter purificador, segundo a tradição japonesa).
17 Apesar de podermos observar esses efeitos luminosos relacionados à alteração da luz no decorrer do dia no Panteão Romano ou mesmo na capela de Ronchamp, nesse sentido, a igreja da Luz não tem paralelo com nenhuma outra. Contrariando a tendência da arte moderna - de inferiorização do poder da obscuridade - o arquiteto reconhece-lhe qualidades indispensáveis para a formulação dos seus projetos: a noção de profundidade, austeridade, silêncio, serenidade, que, conjugadas, transmitem um ambiente místico e religioso (aos quais não é indiferente a monocromia do betão, cuja capacidade reflectora não chega aos 30%, o que acentua o carácter sombrio do espaço), como se pretende para uma igreja deste gênero. Segundo o próprio Ando, embora atualmente tudo esteja envolvido por uma luz homogênea, a minha atenção é atraída pelas relações que subsistem entre luz e obscuridade; na obscuridade, a luz é como uma jóia que se pode ter na mão Imaginava um espaço assim desse gênero quando construí a igreja da luz, uma caixa fechada com paredes em betão, uma construção da obscuridade (PAIVA, 2010:74). A sensação de profundidade, austeridade, silêncio e serenidade são obtidas através da manipulação da luz natural. A luz imanada pela abertura em forma de cruz, representação simbólica do Divino, confere sacralidade ao templo e dá vida ao espaço através de sua constante alteração ao longo do dia. Para Paiva (2010), a iluminação diminuta, gerada não só pela pequena dimensão das aberturas, mas também pelo concreto que pouco a reflete, resulta em um espaço sombrio, mas curiosamente tranquilo e propício à meditação. 7. Conclusão A arquitetura e a luz natural são temas intimamente ligados. Ambas percorreram ao longo dos séculos, e hoje ainda percorrem, um caminho trilhado lado a lado. Tal fato de dá por ser a luz natural um elemento fundamental e necessário à arquitetura. Como foi visto, a cada período da história da arquitetura corresponde uma forma particular de utilização da luz. Assim, na medida em que foram utilizados novos materiais ou desenvolvidos novos sistemas construtivos, de forma a atender os novos programas, a luz passa a ser utilizada de forma diferente. Foi percebido que a cada momento da arquitetura através dos séculos a luz vem sendo utilizada de uma forma característica. Tal como o tijolo, o concreto ou o vidro, a luz é matéria prima do projeto arquitetônico e acompanha a evolução da técnica e as necessidades do seu tempo. No caso dos programas religiosos, a luz é um recurso de infinitas possibilidades. De acordo com a vontade do arquiteto, a forma como a luz interage com o ambiente pode expressar diferentes significados. O processo de concepção em arquitetura é extremamente complexo. Podem-se gerar, a partir de um projeto, emoções tão diversas como introspecção, enlevo, êxtase, fascínio, ou deslumbramento. A luz determina a percepção das texturas e das formas, criando um efeito e uma disposição psicológica em relação ao espaço construído.
18 Mesmo partindo de diretrizes semelhantes, ligadas à luminosidade dramática que o tema religioso exige, arquitetos podem chegar a resultados diversos. Isso pode ser percebido nas cores e na constante transformação da luz de Ronchamp, na abundância de luz e nos contrastes da Catedral de Brasília, na penumbra da Igreja da Luz e em tantos outros projetos onde a luz associada à arquitetura religiosa se torna uma luz repleta de significados. Mais do que um aspecto técnico-construtivo, a utilização da luz natural pode, portanto, ultrapassar seus aspectos funcionais e dar ao arquiteto, intermediário entre a arte e a função, ferramentas para transcender a técnica e alcançar a emoção. Referências BAKER, G. H. Le Corbusier: uma análise da forma. São Paulo: Martins Fontes, BARNABÉ, Paulo Marcos Mottos. A Poética da Luz Natural na Obra de Oscar Niemeyer. Semina: Ciências Humanas e Sociais, Londrina, v. 23, p Setembro de Disponível em: < Acesso em 8 de maio de BARNABÉ, Paulo Marcos Mottos. Luz natural como diretriz de projeto. Maio Disponível em < Acesso em 8 de maio de CORBUSIER, Le. Vers un Architecture. Paris: Flammarion, DAL CO, F. Tadao Ando: Complete Works. London: Phaidon Press, FRACALOSI, Igor. Clássicos da Arquitetura: Capela de Romchamp Le Corbusier. Janeiro Disponível em: < Acesso em 5 Mar FURUYAMA, Massao. Tadao Ando. São Paulo: Martins Fontes, GIEDION, Siegfried. El presente eterno: Los comienzos de la arquitectura. Madri: Alianza, GOMBRICH, E. H. A História da Arte. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, HOPKINSON, R.G. e Kay, L.D. The light of building. London: Faber and Faber Ltd., LABORATÓRIO DE ILUMINAÇÃO DA UNICAMP. Disponível em: < Acesso em 28 de Fevereiro LIMA, Mariana Regina Coimbra de. Percepção Visual Aplicada à Arquitetura e à Iluminação. Rio de Janeiro: Editora Ciência Moderna Ltda., 2010.
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