Os pichadores de Jabalia

Transcrição

1 Tradução Paulo Daniel Farah Guia de leitura para o professor 84 páginas Conflitos entre Israel e Palestina: a importância de discutir esse tema A questão palestina é um dos temas que mais habitam a mídia há praticamente 60 anos. Envolve povos que ocupam uma região onde se desenvolveram culturas milenares e três importantes religiões que se espalharam pelo mundo: judaísmo, cristianismo e islamismo. Entender esse conflito de seitas e de posse de terra passa diretamente pela compreensão das intrínsecas relações entre fronteira, Estado, território e nação. O que é ser um povo? O que é ter um território que se transforma em pátria, em nação? Organizações internacionais são chamadas para remediar os conflitos, grupos independentes são formados para buscar a todo custo garantias de manutenção de um território... A luta entre s e judeus envolve questões geopolíticas relacionadas ao petróleo, à água, à religiosidade e parece embasar recíprocos sentimentos de ódio que retroalimentam estratégias geopolíticas, num emaranhado cujo desembaraço se mostra um dos mais difíceis da atualidade.

2 A riqueza das culturas e das religiões dos árabes e dos judeus, em conjunto com a infinidade de conflitos deflagrados desde a criação do Estado de Israel, dificulta imensamente o entendimento das complexas desavenças históricas. Ao abordar o conflito por um viés literário, por meio de fábulas de Kalila e Dimna (uma das principais obras de todos os tempos, escrita no século VIII e berço de muitas narrativas populares perpetuadas até hoje), entremeando-as com situações reais e duras vividas num campo de refugiados s, o autor consegue tratar poeticamente de um tema árduo e difícil. Mais do que isso, apresenta os personagens por sua esfera sensível (comum a todos, não importando credo ou etnia) e, com isso, os aproxima do leitor, fazendo com que a discussão ganhe um enfoque muitas vezes esquecido pela mídia: de que o conflito passa por questões humanísticas, pelo referencial do que significa ter pátria, ser um povo e perpetuar uma tradição. Refletindo sobre a temática Israel e Palestina: a necessidade de enxergar o outro Atualmente, considerando a grande quantidade de informações veiculada pela mídia, é comum atribuir atos terroristas a grupos fundamentalistas, sobretudo árabes. Também habitam a mídia as ações desesperadas de s na procura exaustiva pelo controle de um território perdido há décadas. Interessante notar que, ao nos aprofundarmos no estudo histórico e geopolítico da questão, percebemos que ações semelhantes foram disparadas por povos judeus desde o final do século XIX, numa busca incessante da construção de um Estado-nação e do domínio territorial da região onde se encontra a Palestina. Ou seja, não existem, como por vezes a mídia tenta tachar, somente bons ou maus ; não há apenas dois lados opostos do conflito, mas justamente o desconhecimento, a anulação, a falta de diálogo entre esses dois lados. A oposição se dá, também, por via da ignorância. Os pichadores de Jabalia traz justamente a inversão desse olhar por vezes viciado: a percepção por meio do soldado israelense que vai servir em um campo de refugiados s da existência do outro, da exclusão deste outro e de toda uma série de códigos e comportamentos culturais, sem o mínimo de respeito e humanidade. Este livro promove, portanto, o encontro de duas realidades, de duas culturas, de duas percepções do mundo. Propõe uma

3 reflexão que torne possível o que o autor diz na introdução da narrativa: Cabe a nós, a todos que nasceram no conflito, aceitar juntos o direito de retorno dos refugiados s. Tentar resolver juntos a questão da integração deles e juntos construir uma nova sociedade mediterrânea na qual o respeito aos direitos humanos e o respeito ao direito internacional sejam os fundamentos de sua Constituição. Conflitos recentes de uma história milenar Os conflitos territoriais na região da Palestina são muito antigos. Ocorrem há pelo menos três mil anos. Conflitos do povo judeu com seus vizinhos territoriais datam aproximadamente do ano 1000 a.c. Após a morte de Salomão, sucessor de Davi, em 926 a.c., a nação judaica começa a se fragmentar. Sofre dominação e perseguições de vários povos, como assírios, persas, babilônios, gregos e romanos. Passa por duas diásporas, ou seja, os judeus são expulsos de seu território, em 586 a.c. e 70 a.c. Expulsos ou como escravos, migram para diversas partes do mundo. Com a saída dos judeus, a região da Palestina é ocupada pelos árabes a partir do ano 636. A população é convertida ao islamismo. Desde então, a Palestina é habitada majoritariamente por povos árabes, mesmo com a criação do Estado de Israel, em O sionismo e o processo da formação do Estado de Israel Em busca de uma identidade nacional desde o final do século XIX, judeus, sobretudo os da Europa Ocidental, refletem sobre a necessidade de formar seu Estado-nação: isso colocaria fim às perseguições sofridas e organizaria territorialmente seu povo. Pois bem, o retorno emblemático a Sion, colina existente em Jerusalém, na então Palestina, mostra-se a melhor e mais justa opção, pois ali viviam, há dois mil anos, seus antepassados. É lançado o movimento sionista, iniciado na prática em 1896 com o livro O Estado judeu, do jornalista austríaco Theodor Herzl. Vale lembrar que na época vivia-se a forte onda nacionalista espraiada por toda a Europa e que, sem dúvida, serviu como inspiração para que Herzl colocasse tal proposição. No ano seguinte, Herzl organizou um congresso em Basiléia, na Suíça, cuja pauta centrou-se na criação de um Estado judeu na Palestina. Tal propósito, porém, parecia não considerar a existência milenar de habitantes árabes na Palestina. Eram cerca de 500 mil pessoas que ali viviam, com história e tradições arraigadas, e que, naquele momento, estavam sob domínio do Império Otomano.

4 Agregavam-se àquela população 50 mil colonos judeus, que para lá já se direcionavam, aos poucos, vindos da Europa Oriental, de onde emanava um forte sentimento anti-semita (antijudeu), sobretudo da região dominada pelo Império Czarista Russo. Porém os judeus ainda constituíam minoria absoluta no território. Mas o movimento sionista reverberava e, durante a Primeira Guerra Mundial, ocorrida entre 1914 e 1918, principalmente o Reino Unido e a França buscaram soluções para desbancar o Império Otomano em toda a região do Oriente Médio. Sobretudo aos britânicos, tal resolução parecia de grande valia, já que poderia, assim, ser criado um lar judeu na Palestina, cuja iniciativa lhes conferiria poder de influência na região, ao mesmo tempo que poderiam conter a imigração judaica à Inglaterra. O movimento sionista considerava que todos os judeus espalhados pelo mundo eram, na realidade, exilados e que agora deveriam migrar de volta ao lar. Esse lar se estendia entre o rio Jordão e o mar Mediterrâneo, desde o sul do Líbano e sudoeste da Síria, ladeado pelo Egito e pela Jordânia em direção ao sul, até o limite do golfo de Ácaba. Na década de 1930, os judeus já somavam 300 mil pessoas na Palestina, e o movimento voltado à criação do Estado judeu se tornava mais e mais intenso, sobretudo devido à forte perseguição da Alemanha nazista aos judeus. Nesse período a Inglaterra já não conseguia manter a hegemonia na Palestina e os judeus foram ganhando força em número e em posses, especialmente em propriedades fundiárias. Judeus de todo o mundo compravam terras e montavam colônias agrícolas, os kibutzim. Assim, muitos judeus fugidos da então beligerante Europa em plena Segunda Guerra Mundial aportaram na Palestina já com títulos de propriedades, o que lhes permitiu expulsar tradicionais famílias camponesas palestinas de suas terras ancestrais. Em paralelo e independentemente dos ingleses, que agora buscavam resolução na criação de uma Palestina que abarcasse em paz árabes e judeus, os sionistas forçavam a Inglaterra a cumprir sua promessa de criação do Estado judeu na Palestina. A região foi se tornando um barril de pólvora. A criação do Estado de Israel no contexto do final da Segunda Guerra Mundial Perante a impossibilidade de criar um Estado judeu na Palestina, os britânicos passaram tal responsabilidade a uma organização internacional. Mantiveram em terras palestinas seu Alto Comis-

5 sariado, cuja permanência simbolizava o domínio imperial inglês na região desde o final da Primeira Guerra Mundial, em A questão, portanto, pairou sob a égide da recém-criada Organização das Nações Unidas (ONU). Nascida em 1945 com o compromisso de promover a manutenção da paz entre os países, a ONU anunciou, em 1947, a divisão do território, cuja partilha viabilizaria a criação do Estado judeu. Naquele momento a proposta contemplava 42,9% do território aos árabes, cuja população representava 2/3 do total. Aos judeus, cerca de 30% da população, caberiam 56,5% do território. A área restante, correspondente a Jerusalém, seria submetida ao controle internacional, ou seja, à ONU. Em 1948, a Inglaterra se retirou definitivamente da Palestina e, em maio, foi proclamado o Estado de Israel, mesmo com os votos contrários à partilha da Índia e dos países árabes, na Assembléia Geral da ONU. Originou-se a guerra de independência de Israel, que durou até Exércitos do Egito, da Síria, do Iraque, do Líbano, da Transjordânia (atual Jordânia) aliaram-se ao Exército de Libertação Árabe, formado por árabes da Palestina, contra Israel. Ao final do conflito, Israel venceu, expandindo seu território. A Palestina, tal como havia sido determinado pela ONU, deixou de existir. Foi ocupada em parte por Israel, em parte pelos árabes. Com o fim da Palestina, surgiu a denominada questão palestina : a luta do povo árabe por sua identidade nacional, representada pelo resgate do domínio territorial. Em 1956, a crise do canal de Suez marcou um novo conflito. Numa política de união e nacionalismo árabe, o governo egípcio, liderado por Gamal Abdel Nasser, nacionalizou o canal e fechou a principal passagem de abastecimento de petróleo a Israel, o estreito de Tiran. Isso contrariou Grã-Bretanha, França (que construíram o canal) e Israel e fez com que Estados Unidos e a então União Soviética entrassem em cena para promover a resolução do conflito. Ao final, o Egito permaneceu com a posse do canal de Suez, mas liberou a passagem de navios israelenses. Em 1967, a Guerra dos Seis Dias também foi um importante conflito. Dessa vez, os árabes conseguiram dominar as áreas ocupadas por Israel, que logo reagiu: tomou do Egito a faixa de Gaza e a península do Sinai; da Jordânia, a Cisjordânia e o setor oriental de Jerusalém; e da Síria, as colinas de Golan. Portanto, Israel, ao final do conflito, novamente expandira seu território. Em 6 de outubro de 1973, no dia do Perdão para os judeus (feriado do Yom Kippur), os árabes invadiram Israel repentina-

6 Em 1964 foi criada a Organização para Libertação da Palestina (OLP), liderada por Yasser Arafat, que a presidiu até sua morte, em Desde 1998, quando foi rebatizada Autoridade Palestina (AP), a organização responde internacionalmente pela nação palestina. Atualmente é presidida por Mahmoud Abbas. A OLP tinha base principalmente no Líbano, por onde atacava Israel. Em 1987 eclodiu a Intifada, grande revolta palestina. Inicialmente atuando por via de ações terroristas, a OLP passou, nos anos 1990, a agir diplomaticamente, obtendo reconhecimento dos Estados Unidos. Nos anos 1970 e em 2000, acordos de Camp David (nome da residência de férias do presidente dos Estados Unidos, onde as reuniões eram realizadas) tentaram firmar a paz. Os s esperavam, nessas ocasiões, a formalização do Estado da Palestina com a devolução das terras ocupadas pelos judeus desde a guerra de independência de Israel. A frustração da segunda reunião levou-os a uma nova Intifada em meados de Israel atacou e destruiu infra-estruturas árabes e isolou Yasser Arafat. Yasser Arafat ( ) é um dos símbolos da luta palestina por ter um território que possa ser chamado de pátria. Líder da antiga OLP, e posteriormente da AP, retirou a OLP da esfera do terrorismo, liderou acordos de paz e, em 1994, com Ytzhak Rabin (primeiro-ministro de Israel) e Shimon Peres (ministro de Relações Exteriores de Israel), ganhou o Prêmio Nobel da Paz. mente. Com a ajuda fundamental dos Estados Unidos, Israel reagiu e venceu novamente. Desde tais conflitos, várias ações e acordos foram promovidos. Atualmente, ainda se espera uma resolução pacífica. Em 2005, os judeus desocuparam a faixa de Gaza, o que traz esperanças ao povo para a recriação de seu Estado territorial. Porém grupos ortodoxos judeus são contrários à devolução, o que tende a prolongar os conflitos e a instabilidade regional, com fortes conseqüências internacionais. Mergulhando no livro Os pichadores de Jabalia traz uma abordagem muito interessante sobre a vida cotidiana num campo de refugiados s. Trata de questões profundas de dois povos milenares, que atualmente cultivam ódio mútuo. Sobretudo as gerações que nasceram durante os conflitos são criadas numa situação de guerra e intolerância. Um excepcional mérito do livro é apresentar a reflexão de um soldado israelense sobre a alteridade, sobre a necessidade de pensar no outro para que seja possível o reconhecimento de si mesmo. O autor contextualiza o enredo a partir de temas ligados à educação e à leitura como maneira de entender e aproximar esse outro. No cenário da guerra, chama a atenção a sensibilidade do soldado israelense em relação às aulas em que se ensinam literatura, história e gramática a partir de fábulas e metáforas do grande Kalila e Dimna. Tal abordagem conduz o leitor a uma reflexão diferenciada das que normalmente são feitas sobre o conflito entre judeus e s. Em vez de simplesmente julgar e procurar culpados, ela passa pelo entendimento de como o outro enxerga o mundo, aproximando, referenciando e produzindo certa identidade dos alunos leitores com a realidade tão diversa dos estudantes s, sobretudo na situação de refugiados. Os códigos e sistemas de comunicação representados pelas pichações no campo de refugiados têm significados reais, mas também lúdicos. Ilustram uma profunda organização, com imensa responsabilidade atribuída aos jovens. Vêm carregadas de aventura e ação e revelam a união de um povo em torno de um objetivo comum: poder exercer plenamente sua cultura. A situação dos refugiados deste livro se insere no contexto da primeira Intifada, ocorrida em 1987 e diretamente relacionada à OLP.

7 o livro em sala de aula O tema abordado no livro possibilita várias formas de trabalho em sala de aula. Podem-se realizar debates, seminários e pesquisas que possibilitem o tratamento de conteúdos conceituais, mais voltados para a história do conflito entre árabes e judeus. Com base em informações difundidas na mídia, os alunos podem iniciar uma pesquisa que abarque a questão palestina, levando em conta itens como: mapas da partilha; os quatro grandes conflitos (guerra da independência de Israel, canal de Suez, Guerra dos Seis Dias e Yom Kippur de 1973); acordos de paz; Intifada; OLP e Arafat: uma nação sem território; a atual proposta do Irã de levar Israel para território alemão; o terrorismo e os fundamentalismos religiosos; criação da OLP e da AP. Nesses debates ou seminários, os alunos podem apresentar uma proposta de resolução dos problemas. Enquanto os alunos expõem suas propostas, o professor pode falar de ações concretas que vêm sendo feitas, como a do pianista e maestro judeu Daniel Barenboim, que busca, por meio da música, estabelecer um diálogo entre árabes e judeus. Ele se apresenta diversas vezes juntando músicos israelenses e árabes. Após os seminários, seria interessante apresentar aos alunos, mesmo que com mediação e leitura, um dos mais importantes intelectuais de todos os tempos, o Edward Said ( ). Pode-se propor a leitura de pequenos trechos de livros de Said, como Orientalismo o Oriente como invenção do Ocidente (São Paulo, Companhia das Letras, 1998), em que o autor retoma a história dos povos orientais e a forma como suas imagens foram construídas. Nesse livro, Said revela que a representação ocidental do que é o Oriente tem pouco a ver com as culturas e os povos que de fato vivem naqueles locais, sendo mais uma busca de diferenciação e uma tentativa de justificação do poder colonial do Ocidente sobre o Oriente. A partir da leitura, pode-se organizar outro debate. Nele, os alunos podem reunir novamente o material de jornais, revistas e internet em que se basearam e os confrontar com as proposições de Said.

8 Bibliografia Para o professor Adão, Edílson C. Oriente Médio: a gênese das fronteiras. São Paulo: Zouk, Enciclopédia do mundo contemporâneo. Tradução de Jones de Freitas, Japiassu Bricio, Renato Aguiar. São Paulo: Publifolha; Rio de Janeiro: Terceiro Milênio, Hourani, Albert. Uma história dos povos árabes. São Paulo: Companhia das Letras, Olic, Nelson Basic. Oriente Médio: uma região de conflitos. São Paulo: Moderna, Said, Edward. Orientalismo o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, Para o aluno O presente da vovó Sara. Ghazi Abdel-Qadir. Edições SM, Barco a Vapor, série laranja. História de Liana, uma menina que tenta proteger a avó de sua morte num pequeno vilarejo sírio. O monstro da escuridão. Uri Orlev. Edições SM, Barco a Vapor, série laranja. Menino judeu perde o pai na Guerra de Yom Kippur e começa a acreditar que existe um monstro embaixo de sua cama, mas resolve domesticá-lo. Anne Frank. Josephine Poole. Edições SM. Livro ilustrado que conta a vida de Anne Frank e sua infância antes que ela e sua família fossem presas pelos nazistas. Amigos de fé. Monique Gilbert. Edições SM. Escrito por uma jornalista francesa, apresenta características do judaísmo, cristianismo, islamismo e protestantismo por meio do cotidiano de quatro casais de irmãos fictícios. Elaboração do guia Laércio Furquim, professor de geografia da Escola da Vila, São Paulo; preparação Shirley Gomes; revisão Márcia Menin e Carla Mello Moreira